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19 de Abril de 2024

As mutilações ao feminino ocorridas na África, o relativismo cultural internacional e a discriminação positiva em prol da igualdade de gênero no direito brasileiro

Publicado por Lara Terazzi Basso
há 6 anos

RESUMO

A Declaração Universal de Direitos Humanos completou sessenta e sete anos no dia 10 de dezembro de 2015 e ainda assim observa-se a prevalência de processos discriminatórios que nos distanciam da pretensa egalité iluminista. No que se refere ao sexismo, com todas as práticas e discursos que suportam a exclusão e a desigualdade, a questão é ainda mais clara. A prática de mutilar a genitália feminina é uma violência de gênero e um atentado aos direitos humanos contra a mulher e contra à criança. Ocorre que, qualquer abordagem que tem como objetivo final a erradicação da mutilação genital feminina invariavelmente esbarrará no relativismo cultural, que deveria implicar em uma observação do sistemas culturais, sem uma visão etnocêntrica da sociedade vigente, assim sendo, um dos tópicos que será abordado neste artigo tratará do relativismo cultural. Por fim, compreendendo a difícil relação entre o já exposto perceberemos os reflexos desta celeuma de ordem internacional e na realidade jurídica interna uma vez que a igualdade definida pela Constituição da República também não deve ser interpretada no seu sentido literal, se fazendo então necessário discriminar determinados grupos a fim de proteger e, consequentemente, não incorrer em inconstitucionalidade.

1. Sobre desigualdades biológicas, sociais e de gênero - uma relação histórica

Historicamente a desigualdade entre os gêneros está incrustrada nas relações sociais, desde tempos de outrora. Diga-se de passagem, as lacunas sociais instauradas entre homens e mulheres sempre dialogaram (ilegitimamente) com as diferenças biológicas entre os corpos. Tomando como base o livro de “Gênero, corpo e conhecimento”, das historiadoras Alisson Jaggar e Susan Bordo, será possível observar seguintes constatações:

A absoluta subordinação das mulheres, dos escravos e dos não gregos já estava na prática bem estabelecida na Atenas de Péricles do século V a.C. (...). Aristóteles, algumas décadas mais tarde, tinha um interesse primário nas mulheres como mães. As mulheres grávidas deviam cuidar de seus corpos, mas ‘manter suas mentes quietas’. Aristóteles considerava a ‘inferioridade’ dos escravos e das mulheres como algo natural, mas declarava que a natureza quem fez a distinção entre mulher e escravo criando para cada coisa um uso singular.[1]

Conforme é possível perceber no trecho acima evidencia uma concepção aristotélica – bem como seu pseudo respaldo naturalístico – que dominou e projetou efeitos sociais por muitos anos. A ciência e a filosofia sempre apontaram para a superioridade masculina como consequência de fatores biológicos. É nesse sentido que Carole Pateman, cientista política da universidade de Sydney, expõe;

As mulheres não podem ser incorporadas à sociedade civil tal como os homens por que elas são naturalmente privadas das aptidões necessárias para se tornarem indivíduos civis. Mas o que exatamente as mulheres são privadas? Os teóricos clássicos do contrato não – sobre os quais discuti no capítulo anterior – são extremamente vagos nesse sentido. O significado da referência de Pufendorf à ‘superioridade’ do sexo masculino, ou a declaração de Locke segundo a qual a sujeição da mulher tem ‘uma base natural’ estão longe de ser manifesto. A explicação que eles fornecem limitam-se a referência à maior força física e mental ou à capacidade superior do homem. A contradição entre os pressupostos da teoria do contrato e as invocações à força natural era imediatamente clara.[2]

É recorrente atribuir qualquer demérito ao sexo feminino a características naturais, que via de regra não são cientificamente comprovada. É cediço que há na sociedade civil organizada papéis sexualmente definidos decorrente da existência da própria sociedade, gerando as tão nítidas diferenças entre os gêneros. Pode-se afirmar que em todos os períodos históricos a subordinação de um sexo em relação ao outro – em sua absoluta maioria patriarcal – tem origem política. Em função disto surgiu o movimento feminista, voltando-se de início à busca incessante pela superação destes dogmas.

Ao longo da história ocidental sempre houve mulheres que se rebelaram contra sua condição, e foram se convencendo aos poucos que talvez merecessem um pouco mais de importância. Inicialmente, as reivindicações eram por liberdade e muitas vezes custaram suas próprias vidas. Por exemplo, o Tribunal do Santo Ofício ocorrido entre o séc. X e o séc. XVIII foi implacável com qualquer mulher que desafiasse os princípios por ela pregados como dogmas insofismáveis. Porém, e a partir do séc. XV que a busca por igualdade entre os gêneros teve um início tímido na Europa, mas esses pequenos lampejos não podem receber um rótulo “feminista” por não objetivarem a real igualdade social entre os gêneros, apenas vislumbravam condições de trabalho e de vida menos desumanas.

No final do séc. XIX foi quando surgiu as primeiras organizações específicas, chamada de primeira onda do feminismo, quando mulheres na Inglaterra – em princípio – se uniram para lutar pelo direito de voto. Estas, que ficaram conhecidas como as sufragistas, promoveram grandes movimentações na sociedade londrina, até que em 1918, o direito ao voto foi conquistado no Reino Unido.

Este se intensificou e a partir de 1950, quando líderes feministas começaram a afirmar que as supostas diferenças de capacidade entre homens e mulheres eram em decorrência das diferenças sociais estabelecidas. Em outras palavras “as diferenças de capacidade” não existiriam se ambos os sexos tivessem acesso às mesmas informações, escolas, ferramentas entre outros. Estas também denunciaram, em diversas obras, a difícil relação social entre uma mulher e uma sociedade patriarcal. Na obra “O segundo sexo” Simone de Beuvoir narra os aspectos mais íntimos do desenvolvimento de uma mulher na sociedade machista, conforme segue:

Ela pressente que sob as carícias será levada pela grande corrente da vida, como no tempo em que repousava no ventre da mãe; submetida à sua doce autoridade, encontrará a mesma segurança que tinha nos braços do pai: a magia dos amplexos e dos olhares transformá-la-á novamente em ídolo. Sempre esteve convencida da superioridade viril; este prestígio dos homens não é uma miragem pueril. Tem bases econômicas e sociais; são indiscutivelmente os senhores só mundo, tudo persuade a adolescente de que é de seu interesse tornar-se vassala; seus pais a incitam: o pai orgulha-se dos êxitos da filha, a mãe nele vê as promessas de um futuro próspero; as colegas invejam e admiram a que conquista numerosas homenagens masculinas (...). O casamento não é apenas uma carreira honrosa e menos cansativa do que muitas outras: só ele permite à mulher atingir a sua dignidade social integral e realizar-se sexualmente como amante e mãe.[3]

Pateman afirma e sustenta que institucionalmente a sociedade sustenta as diferenças entre os gêneros tem uma espécie de “contrato sexual”. De forma brilhante, ao final de sua obra, a Autora que neste contrato as mulheres estariam inseridas em um paradoxo, conforme se lê:

As feministas não avaliaram a dimensão total do paradoxo e da contradição envolvida na incorporação das mulheres à sociedade civil. Se as mulheres tivessem sido totalmente excluídas da vida civil, como escravos ou as esposas, quando a doutrina da proteção prevalecia, então a natureza do problema estaria clara. Mas as mulheres foram incorporadas a uma ordem civil, na qual sua liberdade está aparentemente garantida, uma garantia renovada a cada vez em que se reconta a história do contrato social, na linguagem do indivíduo. A liberdade é desfrutada por todos os ‘indivíduos’, uma categoria que, potencialmente, diz respeito a todos, homens e mulheres, brancos e negros igualmente. Na plenitude do tempo qualquer exceção acidental, histórica, ao princípio da liberdade, será removida.[4]

Aos pouco se foi observando que liberdade não implicaria em igualdade. Por isso, feminismo com o passar dos anos foi deixando de ser somente movimento libertário. Com ele passou-se a almejar espaço para a mulher no mercado trabalho, na vida pública, na educação. Trata-se de uma luta por uma nova forma de relacionamento entre homens e mulheres e na busca pelo empoderamento desta última possibilitando-a exercer livre arbítrio sobre sua vida e seu corpo. O movimento denuncia a existência de dominação social, política e sexual e que cada uma tem características próprias não devendo essas ser confundidas entre si. Ocorre que, mesmo com os anos de luta, as dificuldades seguem.

2. Sobre as diferenças de gênero na atualidade

Somos ensinados quando crianças, nos primórdios de nossas vidas acadêmicas, a buscar o significado das palavras desconhecidas no dicionário, hábito que vem sido rapidamente aniquilado pela internet. Suponhamos que, já na década de 1990, uma criança – mais precisamente uma menina – teve a curiosidade de pesquisar o vernáculo “Mulher” esta teria percebido a seguinte definição ipsis litteris[5]:

mulher. [Do lat. muliere]. S.f. 1. O ser humano do sexo feminino capaz de conceber e parir outros seres humanos, e que se distingue do homem por essas características. 2. Esse mesmo ser humano considerado como parcela da humanidade: os direitos da mulher. 3. A mulher na idade adulta. 4. Rest. Adolescente do sexo feminino que atingiu a puberdade; moça. 5. Mulher dotada de chamadas qualidades e sentimentos femininos (carinho, compreensão, dedicação ao lar e à família, intuição): Como mulher, sabe apoiá-lo na justa medida. 6. A mulher considerada parceira sexual do homem. 7. Deprec. A mulher considerada o sexo frágil, dependente, fútil, superficial ou interesseiro: O rapaz se deixou envolver por m u l h e r e s. 8. Cônjuge do sexo feminino: a mulher em relação ao marido; esposa. 9. Amante, concubina, companheira. 10. Mulher que apresenta determinados requisitos necessários para uma tarefa; mulher-de-casa. 11. Uma mulher; Quem telefonou? Uma mulher. [Aum., nas acepç. 1. 3. A 6. Mulheraça, mulherão ou mulherona.] · Mulher à-toa. Bras. Pop. V. Meretriz. Mulher de comédia. Bras. Pop. Rj. V. Meretriz. Mulher da rótula. Bras. Pop. V. Meretriz. Mulher de rua. Bras. Pop. V. Meretriz. Mulher da vida. Bras. Pop. V. Meretriz. Mulher da zona. Bras. Pop. V. Meretriz. Mulher de amor. Bras. Pop. V. Meretriz. Mulher de césar. Com reputação inabalável. Mulher de má nota. Bras. Pop. V. Meretriz. Mulher de ponta de rua. Bras. Pop. V. Meretriz. Mulher do fado. Bras. Pop. V. Meretriz. Mulher do fandango. Bras. Pop. V. Meretriz. Mulher do mundo. Bras. Pop. V. Meretriz. Mulher do palo aberto. Bras. Pop. V. Meretriz. Mulher do piolho. Bras. Mulher muito teimosa. Mulher errada. V. Meretriz. Mulher Fatal. Mulher particularmente sensual e sedutora, que provoca ou é capaz de provocar tragédias (...). Mulher perdida. V. Meretriz. (...). Mulher Vadia. Bras. Pop. V. Meretriz[6]

Se, após constatar que “Mulher” é uma criatura parideira que depende de um “Homem” para ter uma definição diferente de “Meretriz”, esta mesma criança continuasse sua pesquisa e decidisse pesquisar o vernáculo “Homem” no mesmo dicionário esta encontraria o seguinte conceito, novamente, ipsis litteris:

homem. [Do lat. homine]. S.m. 1. Qualquer individuo pertencente à espécie animal com maior grau de complexidade na escala evolutiva; o ser humano: (...). 2. A espécie humana; a humanidade: (...). 3. O ser humano com sua dualidade de corpo e de espírito, e as virtudes e fraquezas decorrentes desse estado; mortal: (...). 4. Ser humano do sexo masculino; varão: (...). 5. Esse mesmo ser humano em idade adulta; homem-feito: (...). 6. Rest. Adolescente que atingiu a virilidade. 7. Homem dotado das chamadas qualidades viris, como coragem, força, vigor sexual, etc; macho: Macho que é macho não leva desaforo para casa. 8. Marido ou amante: (...). 9. Homem que apresenta os requisitos necessários para um empreendimento; o homem indicado para um fim: (...). 10. Um homem qualquer; indivíduo, sujeito, camarada, cara: (...). 11. Soldado: (...). 12. Aquele que numa equipe de trabalho, executa ordens de seus superiores (...). 13. Biol. Cada um dos indivíduos da espécie Homo sapiens, única existente da família dos hominidas, do gênero Homo, da ordem dos primatas, classe dos mamíferos, espécie esta que ocupa uma posição especial na natureza, por possuírem seus membros, ao lado das caracteres anatômicos e fisiológicos análogos ao dos mamíferos superiores, outros tantos que lhes são próprios, como a postura vertical com pés e mãos de funções diferenciadas (as mãos com polegares opostos aos outros dedos), o volume do cérebro, o uso da linguagem articulada e o desenvolvimento da inteligência, especialmente das faculdades de generalização e de abstração (...). 14. Ant. Alguém (...). · Homem de lei. Magistrado, advogado, oficial de justiça. Homem da rua. Homem do povo. Homem de ação. Individuo enérgico, ativo, expedito, diligente. Homem do bem. Individuo honesto, honrado, probo. Homem de cor. Homem preto ou mulato. Homem de Deus. Homem piedoso, santo (...). homem de empresa. Indivíduo que tem a seu cargo negócios duma empresa particular; empresário. Homem de espírito. Indivíduo de inteligência viva, engenhosa, sutil, espirituosa. Homem de Estado. Estadista. Homem de letras. Literato, intelectual. Homem de negócios. Pessoa que trata de grandes negócios, e/ou que tem importantes relações de comércio. Homem de palavra. Indivíduo que cumpreo que diz ou promete. Homem de prol. Homem nobre, intelectual ou artista. Homem de pulso. Homem enérgico, firme. (...)[7]

Apesar te tudo já discorrido, neste exemplo observa-se que a sociedade ainda é permeada por um machismo – às vezes explícito e em outras velado – que é insistentemente considerado “inofensivo”. É certo que essa óbvia discrepância entre um conceito e outro assustaria uma criança do sexo feminino e naturalmente ela não sentisse vontade crescer para virar uma mulher. Mais atordoante é pensar que se por ventura, 20 anos depois, essa criança buscasse atualizar essas informações, para talvez escrever um artigo, ela se daria conta que os dicionários atuais ainda contam com as mesmas definições – ou muito parecidas.

Insta aqui salientar que a realidade do sexo feminino em todo o mundo tem melhorado, com certa velocidade difícil de imaginar a décadas atrás. Foram percebidos ganhos em direitos, educação, saúde e em acesso a empregos e meios de subsistência. Além do mais, aumenta cada dia o número de países que garantem direitos iguais perante a lei em questões de posse de terra, casamento e outros domínios. As lacunas de gênero no ensino fundamental têm sido preenchidas, chegando ao ponto de em alguns países as meninas excederem em um terço os meninos no ensino médio. Cada vez mais mulheres jovens frequentam universidades e participam mais da força de trabalho.

Sobre o assunto, o Banco Mundial publicou um relatório intitulado “Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 2012: Igualdade de Gênero e Desenvolvimento”, que traz dados e suas interpretações. Nele observamos logo no início:

O progresso não tem acontecido facilmente. E não aconteceu de modo uniforme para todos os países ou para todas as mulheres — ou em todas as dimensões de igualdade de gênero. A probabilidade de mulheres morrerem durante o parto na África Subsaariana e partes do Sul da Ásia ainda são comparáveis à do Norte da Europa no século XIX. Uma criança urbana rica na Nigéria — menino ou menina — tem em média 10 anos de escolarização, enquanto garotas rurais pobres da etnia Hausa têm em média menos de seis meses. A taxa de morte entre mulheres em relação aos homens é mais alta nos países de renda baixa e média em comparação às suas contrapartes de renda alta, especialmente nos primeiros meses de vida ou nos primeiros anos da infância, e no período reprodutivo. Divórcio ou viuvez leva muitas mulheres a perderem sua terra e seus bens. As mulheres continuam a se agrupar em setores e ocupações caracterizadas como "femininas" — muitas delas são mal remuneradas. As mulheres também têm uma probabilidade maior de serem vítimas de violência doméstica e sofrerem graves lesões. E em quase todos os lugares a representação das mulheres na política e nos cargos de alta gerência em empresas permanece inferior a dos homens.[8]

Em contrapartida deve-se observar também que as mudanças ocorrem lentamente e de forma desigual em todo o globo. Em países desenvolvidos o mercado e instituições de ensino reduzem cada vez mais os hiatos entre gêneros. Porém, em países mais pobres a realidade é outra, sendo os mesmos ainda consideravelmente preocupantes e frequentemente combinados com outros fatores de exclusão, tais como etnia, casta, distância, raça, deficiência física ou orientação sexual.

Em linhas gerais, o aumento da renda e o aumento das possibilidades de acesso à educação e ao mercado de trabalho por si só não foram o suficientes para reduzir os bolsões de diferenças de gênero nas economias periféricas. Isso por que, as barreiras na busca da igualdade de gênero estão fortemente fundadas em costumes sociais fazendo com as oportunidades econômicas para as mulheres não se expandem muito ou outras barreiras bloqueiem o acesso a tais oportunidades. Esclarece o relatório, sobre o tema:

Até na educação, onde os hiatos têm diminuído na maioria dos países, a matrícula das meninas no ensino fundamental e médio melhorou muito pouco em muitos países da África Subsaariana e em algumas partes do Sul da Ásia. As matrículas na escola para meninas em Mali são comparáveis às matrículas nos Estados Unidos em 1810, sendo que a situação na Etiópia e no Paquistão não é muito melhor. E em muitos países, os hiatos gênero permanecem grandes apenas para os que são pobres. Na Índia e no Paquistão, enquanto meninos e meninas no quintil superior de renda (quinto) estão matriculados na escola em índices semelhantes, existe um hiato de gênero de quase cinco anos no quintil inferior de renda.

Além dos pobres, os hiatos de gênero permanecem particularmente grandes para grupos para os quais a etnia, a distância geográfica e outros fatores (como deficiência física ou mental ou orientação sexual) constituem a desigualdade de gênero. Cerca de dois terços das meninas fora da escola em todo o mundo pertencem a grupos minoritários étnicos em seus próprios países. A taxa de analfabetismo entre as mulheres indígenas na Guatemala é de 60%, 20 pontos acima dos homens indígenas e duas vezes a taxa de mulheres não indígenas.[9]

É possível afirmar que a persistência das diferenças de gênero nesses países até os dias atuais é um problema com múltiplas causas. Estas nascem das estruturas institucionais, políticas, econômicas e sociais que são continuamente reproduzidas de geração a geração.

E mesmo no que se refere ao aumento de mulheres em postos de trabalhos é importante ressaltar que esse aumento não implica em oportunidades igualdade de emprego ou em salários. Os gêneros ocupam setores econômicos diferentes, mesmo nos países de alta renda. Na massiva maioria dos países pesquisados pelo banco mundial, as mulheres têm mais probabilidade de participar de atividades de baixa produtividade, além de ocuparem com mais frequência empregos familiares não remunerado ou de trabalho no setor informal. Sobre isso temos:

Na agricultura, principalmente na África, as mulheres trabalham em terrenos menores e cultivam culturas menos remunerativas. Como empresárias, elas tendem a gerenciar empresas menores e a se concentrarem nos setores menos lucrativos. E no emprego formal, elas se concentram em ocupações e setores do ‘sexo feminino’. Esses padrões de segregação por gênero no mercado de trabalho se transformaram com o desenvolvimento econômico, mas não desaparecem.

Como resultado dessas diferenças onde homens e mulheres trabalham, os hiatos de gênero em termos de ganhos e produtividade persistem em todas as formas da atividade econômica, ou seja, na agricultura, no emprego assalariado e no empreendedorismo. Em quase todos os países, as mulheres no setor de fabricação ganham menos do que os homens. Na agricultura, as fazendas dirigidas por mulheres em média têm uma produtividade mais baixa do que as fazendas dirigidas por homens, mesmo para homens e mulheres nas mesmas famílias e para homens e mulheres que cultivem as mesmas culturas. As empresárias (sexo feminino) são também menos produtivas do que os empresários (sexo masculino). Nas áreas urbanas na Europa Oriental e Ásia Central, América latina e África Subsaariana, o valor agregado por trabalhador é menor nas empresas geridas por mulheres do que nas empresas geridas por homens. Para as empresas que atuam nas áreas rurais de Bangladesh, Etiópia, Indonésia e Sri Lanka, as diferenças em termos de rentabilidade são significativas entre as empresas de propriedade de mulheres e as empresas de propriedade de homens[10]

O próprio aponta as causas destas diferenças se devem à forma que sociedade impõe condições para utilização do tempo, acesso a bens e crédito, além de divergir tratamento por parte dos mercados e das instituições formais, principalmente estruturas jurídica e normativa. Explica o relatório:

As diferentes quantidades de tempo que homens e mulheres destinam para prestação de cuidados e realização de tarefas domésticas representam um fator que aumenta a segregação e as consequentes disparidades salariais. Na maioria dos países, independentemente da renda, as mulheres assumem uma responsabilidade desproporcional em termos de tarefas domésticas e prestação de cuidados, enquanto os homens são responsáveis principalmente pelas atividades no mercado. Quando todas as atividades são somadas, as mulheres geralmente trabalham mais horas do que os homens, com consequências para seu lazer e bem-estar. E em todos os lugares elas dedicam mais tempo a cada dia à prestação e cuidados e à realização de tarefas domésticas do que seus parceiros: as diferenças variam de uma a três horas a mais para tarefas domésticas, de duas a dez vezes o tempo para a prestação de cuidados (de filhos, idosos e doentes), e de uma a quatro horas a menos para atividades no mercado. Mesmo quando as mulheres assumem uma parcela maior das atividades no mercado, elas continuam sendo as grandes responsáveis pela prestação de cuidados e realização de tarefas domésticas. E esses padrões são ainda mais acentuados após o casamento e a maternidade.[11]

Outro fator que contribui para a persistência das diferenças de gêneros na atualidade é a segregação no mercado de trabalho e as disparidades salariais. O mencionado relatório apontou que apesar das mulheres possuírem igualdade numérica na população em alguns países, a maioria massiva não terá iguais oportunidades. Os números são diferentes tanto no empreendedorismo quanto na agricultura ou pecuária. Em verdade, este último é o setor que as diferenças são mais severas, conforme podemos observar:

Quão grandes são as diferenças de gênero no acesso a bens (principalmente terra), crédito e outros insumos? Uma variedade de fontes de dados sugere que são enormes. Dados para 16 países em cinco regiões em desenvolvimento indicam que as famílias chefiadas por mulheres têm menos probabilidade de possuir e de lavrar terra. De modo geral, onde as evidências estão disponíveis para todos os agricultores, as mulheres raramente são proprietárias das terras onde lavram. Por exemplo, no Brasil, as mulheres são proprietárias de cerca e 11% das terras. E suas propriedades são sistematicamente menores do que as dos homens. No Quênia, as mulheres contabilizam 5% das propriedades de terras registradas em âmbito nacional. E em Gana, o valor médio das propriedades e terras dos homens é de três vezes as propriedades das mulheres. Do mesmo modo, grandes hiatos são observados no uso de fertilizantes e na melhoria das variedades de sementes na agricultura e também no acesso e uso de crédito entre os empresários e as empresárias.[12]

Por conseguinte, devem-se destacar as falhas de mercado e as restrições institucionais como fatores decisivos para a perpetuação das diferenças entre os gêneros. A dificuldade de acesso a informações sobre empregos, o apoio a promoções e avanços – que geralmente ocorrem motivos de gênero – e a intolerância e incompatibilidade com as obrigações domésticas prejudicam as mulheres que estão tentando chegar ao mercado de trabalho, principalmente os dominados por homens. Não é incomum observar a existência de barreiras legais que impedem as mulheres de ingressar em alguns setores ou ocupações.

O relatório expõe as seguintes comparações:

Figura 1 Em todo o mundo, as mulheres gastam mais horas por dia na prestação de cuidados e na realização de tarefas domésticas do que os homens.

As limitações à liberdade feminina não se resumem à realidade mercadológica instaurada. Elas ainda estão mais expostas riscos de sofrer violência por parte de um parceiro íntimo, por pessoas meramente conhecidas ou por qualquer pessoa. Estão mais propensas também a serem assassinadas, gravemente feridas ou violentadas em qualquer forma por parceiros íntimos. Nesse sentido o tal relatório destaca novamente o Brasil com dados vergonhosos:

A prevalência da violência doméstica varia bastante entre os países, sem nenhuma associação explícita com os rendimentos; apesar de a incidência tender a crescer com a privação socioeconômica, a violência não conhece fronteiras. Em algumas nações de renda média, como o Brasil (regiões de São Paulo e Pernambuco) e Sérvia (Belgrado), as mulheres reportam que a incidência de violência física por parte dos parceiros íntimos atinge 25%. No Peru (Cusco), quase 50% das mulheres são vítimas de graves violências físicas ao longo da vida e na Etiópia (Butajira), 54% das mulheres reportaram estarem sujeitas a abuso físico ou sexual por parte de um parceiro íntimo nos últimos 12 meses.[13]

Ante todo o exposto, resta observar que atualmente os problemas de gênero mais gritantes residem e persistem nas economias periféricas. Este fenômeno ou está associado à falta de políticas públicas para tratarem das deficiências específicas de cada população (seja mercadológica, institucional ou normativa) ou essas existem, mas falta interesse dos governos em impulsioná-las.

Em todo o globo as reformas de gênero seguiram um padrão. Em um primeiro momento será necessário redistribuir recursos e poderes entre os grupos da sociedade. O problema é que mesmo quando uma política pública é bem escolhida e bem trabalhada – algo raro – a consequência direta deste ato será a diminuição do poder de algum grupo. Posteriormente, devem-se confrontar os dogmas, crenças, normas (relativas a papeis de gêneros) da sociedade. Por isso, os movimentos feministas e de libertação das mulheres sempre enfrentou forte oposição.

3. Mutilação genital feminina – conceito, significado e dados

As diferenças entre homens e mulheres possuem fundamentação política assim como a persistência desses problemas asseverada nos países de baixo Índice de Desenvolvimento Humano e Econômico. Uma das consequências mais gritantes e odiosas da descriminação entre os sexos é a Mutilação Genital Feminina. Também denominada de “corte dos genitais femininos” trata de qualquer procedimento que implique na remoção parcial ou total dos órgãos genitais externos ou ainda quaisquer danos infligidos aos órgãos genitais femininos por motivos não médicos. Há registo desta prática por todo o globo, embora predomine nas regiões do Oeste, Este e Nordeste de África, em alguns países na Ásia e Médio Oriente e entre certas comunidades de imigrantes na América do Norte e Europa.

Médicos e especialistas salientam que não há qualquer benefício para a saúde que possa advir da mutilação genital feminina. Pelo contrário, é conhecido que a remoção ou lesão de tecido genital saudável interfere no funcionamento natural do corpo e tem, tanto a curto quanto a longo prazo, consequências à saúde das vítimas. Por fim, a prática é dolorosa, traumática e humilhante.

De acordo com a declaração conjunta “Eliminação da mutilação genital feminina”, desenvolvida pelo ACNUDH (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos), UNFPA (Fundo das Nações Unidas para a População), ONUSIDA (Programa Conjunto das Nações Unidas sobre o VIH/SIDA), ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), PNUD (Programa das Nações Unidas para Desenvolvimento Humano), UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), UNECA (Subsecretário Geral e Secretário Executivo Comissão Económica para África), UNIFEM (Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher), UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), OMS (Organização Mundial de Saúde), 100 e 140 milhões de meninas e mulheres em todo o mundo tenham sido submetidas a estes processos. Alerta também, que anualmente 3 milhões de meninas corram o risco de sofrer uma mutilação genital.

Nesta mesma declaração, resta esclarecido:

As comunidades que praticam a mutilação genital feminina apresentam uma variedade de razões de índole social e religiosa para a sua continuação. Do ponto de vista dos direitos humanos, a prática reflete uma desigualdade entre sexos profundamente enraizada e constitui uma forma extrema de descriminação contra as mulheres. A mutilação genital feminina é quase sempre exercida sobre menores, sendo, por conseguinte, uma violação dos direitos da criança. Do mesmo modo, a prática viola os direitos à saúde, à segurança e integridade física da pessoa, o direito de estar livre de tortura, tratamento cruel, desumano ou degradante e o direito à vida, quando daí resulta a morte.[14]

As afetadas pela atrocidade geralmente tem entre 0 e 15 anos (depende da cultura em que a mulher está inserida), sendo a mulheres mais velhas vítimas esporádicas do ato. Este por sua vez é classificado em 4 tipos:

· Tipo I: consiste na remoção parcial ou total do clítoris e/ou do prepúcio (clitoridectomia);

· Tipo II: implica na remoção parcial ou total do clítoris e dos pequenos lábios, com ou sem excisão dos grandes lábios (excisão);

· Tipo III: trata-se do estreitamento do orifício vaginal através da criação de uma membrana selante, pelo corte e aposição dos pequenos lábios e / ou dos grandes lábios, com ou sem excisão do clítoris (infibulação);

· Tipo IV: são todas as outras intervenções nefastas sobre os órgãos genitais femininos por razões não médicas, por exemplo: punção/ picar, perfuração, incisão/corte, escarnificação e cauterização;

Os tipos I, II e III foram registrados em 28 países Africanos além de alguns países da Ásia e Médio Oriente. Formas esporádicas de mutilação genital feminina foram registadas noutros países, inclusive em certos grupos étnicos da América Central e do Sul. A crescente migração fez aumentar o número de meninas e mulheres que, vivendo fora do seu país de origem, foram submetidas à mutilação genital feminina ou que correm o risco de serem sujeitas à prática.

A declaração em questão aponta para a prevalência da mutilação genital feminina e determina que os dados foram calculados por meio de inquéritos nacionais de larga escala, perguntando a mulheres com idades compreendidas entre os 15 e 49 anos se tinham sido submetidas a qualquer tipo de corte. Segue então os dados:

A taxa de prevalência varia consideravelmente, tanto dentro como entre regiões e países, e tem como factor determinante o enquadramento étnico. Em sete países a prevalência nacional é quase total (mais de 85%); quatro países registam elevados índices (60 – 85%); prevalência média (30 – 40%) encontra-se em sete países; os restantes nove países registam baixa prevalência, que se situa entre 0.6% e 28.2%. Porém, as médias nacionais (ver Anexo 3) escondem, por vezes, variações profundas, na prevalência em diferentes zonas da maioria dos países.[15]

O anexo ao qual se refere esse parágrafo é o seguinte:

Figura 2 Prevalência da mutilação genital feminina na África e no Iémem (mulheres com idade entre 15 e 49 anos)

Para os estudiosos a nefasta prática persiste na atualidade por motivos diferentes dos alegados em público. Foi constatado pelos estudos que em todas as sociedades em que esta é praticada tratar-se de uma manifestação da desigualdade de género profundamente enraizada em estruturas de ordem social, econômica e política. Basicamente ela implica na perpetuação de papéis de gênero desiguais e prejudiciais para as mulheres. Existe uma relação próxima entre a capacidade das mulheres exercerem controlo sobre as suas vidas e a convicção de que a mutilação genital feminina deve ser extinta.

Onde esta é praticada de forma generalizada, encontrará suporte tanto em homens como em mulheres, geralmente de forma acrítica, e os seus opositores podem estar sujeitos à condenação e desonra. Alega-se que se trata de algo opcional para as meninas, porém a escolha quase sempre é resultado da pressão social a que elas estão sujeitas pelos seus pares e compelidas pelo medo de serem rejeitadas pelas suas comunidades.

Imperioso ressaltar que as consequências da mutilação genital para as mulheres cujo parto acontece fora de ambiente hospitalar (realidade frequente nesses países), são muito graves. A elevada incidência de hemorragia pós-parto, condição que constitui risco de vida. Nesse sentido expõe o estudo:

Uma conclusão nova e surpreendente do estudo é a de que a mutilação genital das mães tem efeitos negativos nos bebés recém-nascidos. De forma marcante, a taxa de mortalidade de bebés, durante e imediatamente após o parto em mães sujeitas a mutilação genital, é mais elevada do que a das que não o foram: 15% mais elevada para mães com mutilação de Tipo I, 32% para o Tipo II e 55% para Tipo III. Estima-se que, nas regiões estudadas, morrem mais um a dois bebés por cada 100, como resultado de mutilação genital feminina.[16]

Segue esclarecendo:

Por contraste com a mutilação genital feminina, a circuncisão (masculina) apresenta vantagens significativas para a saúde que ultrapassam o baixo risco de complicações quando executada, em condições de higiene, por profissionais devidamente equipados e formados. Vem sendo demonstrado que a circuncisão (masculina) reduz o risco de infecção por VIH em aproximadamente 60% (Auvert et al., 2005; Bailey et al., 2007; Gray et al., 2007) e é actualmente reconhecida como intervenção adicional para a redução da infecção nos homens em cenários com elevada incidência do VIH (ONUSIDA, 2007).[17]

Ademais a Convenção sobre os Direitos da Criança faz referência à capacidade restrita das crianças tomarem decisões, por isso mesmo nos casos em que aparenta existir um acordo ou desejo das meninas de se submeterem à intervenção, na realidade isso resulta da pressão social, expectativas da comunidade e de aspirações de serem aceites como membros de pleno direito da sua comunidade não podendo ser entendida como liberta de coação.

Nesse sentido conclui a declaração que a mutilação genital feminina é uma clara violação a vários princípios e normas de direitos humanos bem estabelecidos que incluem os princípios da igualdade e não discriminação com base no sexo, o direito à vida – quando dos procedimentos resulta a morte – e o direito a estar livre de tortura, punição ou tratamento cruel, desumano ou degradante, assim como os direitos subsequentes. Sobre os elementos normativos afrontados pela prática, esclarece a declaração:

Os direitos à participação na vida cultural e liberdade religiosa estão protegidos por legislação internacional. Contudo, o direito internacional estipula que a liberdade de manifestação religiosa ou de crenças possa estar sujeita a limitações necessárias para proteger os direitos fundamentais e liberdades de outros. Desta forma, razões de índole social e cultural não podem ser evocadas em defesa da mutilação genital feminina.[18]

No anexo II da mencionada declaração encontramos uma extensa lista de tratados internacionais afrontados pela prática da mutilação genital feminina, com especificação de artigos, inclusive. Tamanho aparato, não é suficiente para convencer pessoas e organismos da ordem externa da urgência em se erradicar a mutilação genital feminina, que frequentemente esbarra em argumentos fundados no “relativismos cultural”.

4. Cultura e relativismo cultural – filosoficamente e antropologicamente

Para todo aquele criado em meio a livros e bibliotecas é recorrente o “desatualizado” hábito de buscar o significado de certos termos no bom e velho dicionário. Neste encontramos o seguinte conceito de cultura:

Cultura. [Do lat. Cultura] S.f.d. 1. Ato, efeito ou modo de cultivar. 2. V. cultivar. 3. O complexo dos padrões de comportamento, das crenças, das instituições e doutos valores espirituais e materiais transmitidos coletivamente e característicos de uma sociedade; civilização; cultua ocidental; cultura dos esquimós. 4. O desenvolvimento de um grupo social, nação, etc., que é fruto de esforço coletivo pelo aprimoramento desses valores; civilização, progresso (...). 5. Atividade e desenvolvimento intelectuais; saber, ilustração, instrução (...). 6. Apuro, esmero, elegância (...). 7. Criação de certos animais, em particular microscópios (...).[19]

De acordo com o filósofo alemão Fritz Heinemann, em sua obra “A filosofia do século XX”, a palavra cultura deriva do verbo latino “colere” que significa cultivar ou instruir e do substantivo “cultus” (cultivo, instrução). Etimologicamente o vernáculo está intimamente ligado ao aspecto agrário. Porém é possível perceber que “cultura” tem, em essência, relação com aquilo que o humano transforma. Frequentemente é associado ao nível de instrução da pessoa humana, surgindo os termos “culto” e “inculto”. Apesar do popularmente afirmado, não existem grupos humanos sem cultura e não existe um só indivíduo que não seja portador de cultura. É nesse sentido que passa a expor:

Pelo seu conteúdo, o conceito de cultura remonta a uma comparação dos sofistas gregos: assim como na agricultura se deve reunir terreno bom, boa semente e um lavrador de competência, também no homem, ao lado das aptidões, são necessários o conhecimento e um educador que coloque o conhecimento na alma, como semente no terreno. Em ligação com esta ideia, Cícero, criando linguisticamente o conceito de cultura, fala-nos de uma cultura animi (colere = cultivar, domesticar, tratar, afinar). A este nível, porém, é a cultura ainda um substantivum actions e não se pode manter um genitivo a indicar aquilo sobre que incide o fenômeno do cultivo. Só pode a pouco deixa de se referir a cultura apenas relativamente a um fenômeno que se deve elevar-se ao estado superior para se aplicara esse próprio Estado. Continua-se, no entanto a falar, até o fim do século XVIII, apenas da cultura de um home ou de um povo, do entendimento ou do sentimento ou ainda a esta situação, significa um salto o uso da palavra tomada absolutamente, sem adjunção alguma, a conquista do conceito de uma cultura purae simples que já não seja apenas cultura de algo. Este salto foi dado primeiramente na Alemanha na época de Herder. Só a partir de então, o conceito tomado neste sentido, penetrou noutras línguas. Em francês, por exemplo, culture é, primariamente apenas a formação completa de uma pessoas; o conceito em sentido alemão ainda hoje é considerado “estrangeirismo”. Como conceito concorrente mencione-se o de civilização que vai substituindo, no espaço linguístico inglês, o conceito de cultura.[20]

Resta claro que “cultura” possui ampla carga semântica, que engloba diversos aspectos vida e da sociedade, dificultando então o consenso entre antropólogos e demais estudiosos do tema. Via de regra, observa-se que os conceitos se tocam quando entendem que cultura é todo complexo de conhecimento, crenças, manifestações artísticas, valores morais, leis, costumes, hábitos e aptidões adquiridos ou herdados ou aprendidos pelos seres enquanto membros de uma sociedade determinada. Nesse sentido segue, o retro mencionado Autor:

(...) Para Nietzsche a cultura significava precisamente ‘unidade de estilo em todas as manifestações vitais’. Para Spengler, essa unidade era algo que sempre presente com evidência (...). Para Hegel, a ‘ideia’ autónoma estrutura, supranaturalisticamente, de cima para baixo; Para Marx, a esfera do econômico-social que necessitando da superestrutura ideológica como de uma arma, estrutura todo o resto a partir de baixo. Max Weber supõe uma interdependência recíproca de cada um dos domínios culturais e outros admitem a ação de uma instância que possui prioridade sobre todas as outras (quase à maneira de uma ‘psique social’: Lamprecht).

O conceito de cultura de Jacob Burkardt é mais estrito. Para ele, cultura é umas das ‘três potências’, ao lado da religião e do Estado. (...)[21]

Fica então evidente que cultura não é uma herança genética e sim determinada, mas não tão somente, pelos contextos sociais. Também não é algo engessado, podendo receber influências do receptor em relação ao propagador. Ela está sempre em processo de mudança, em muitos casos com muita rapidez. É certo que o ser humano é formador e formado pela cultura. Nesse sentido que se observa os ensinamentos do antropólogo e professor Roque de Barros Laraia:

As perguntas que comumente se colocam: Mas onde fica o instinto de conservação? O instinto materno? O instinto Filial? O Instinto sexual? Etc.

Em primeiro lugar tais palavras exprimem um erro semântico, pois não se referem a comportamentos determinado biologicamente, mas sim padrões culturais. Pois se prevalecesse o primeiro caso, toda a humanidade deveria agir igualmente das mesmas situações, e isto não é verdadeiro, vejamos:

Como falar em instinto de conservação quando lembramos dos camicases japoneses (pilotos suicidas) durante a segunda guerra mundial? Se o instinto existisse, seria impossível aos arrojados pilotos guiarem os seus aviões de encontro às torres das belonaves americanas. o mesmo é verdadeiro para os índios das planícies americanas, que possuíam algumas sociedades militares nas quais seus membros juravam morrer em combate e assim assegurar um melhor no outro mundo.

Como falar em instinto materno, quando sabemos que infanticídio é um fato muito comum entre diversos grupos humanos? Tomemos o exemplo das mulheres Tapirapé, tribo Tupi do norte do Mato Grosso, que desconheciam quaisquer técnicas anticoncepcionais ou abortivas e eram obrigadas, por crenças religiosas, a matas todos os filhos após o terceiro. Tal atitude era considerada normal e não criava nenhum sentimento de culpa entre as praticantes do infanticídio.

Como falar em instinto filial, quando sabemos que os esquimós conduziam os seus velhos pais para as planícies geladas para serem devorados pelos ursos? Assim fazendo, acreditavam que os pais seriam reincorporados na tribo quando o urso fosse abatido e devorado pela comunidade.

Como falar em instinto sexual? Muitos casos conhecidos de adolescentes, crescidos em contextos puritanos, que desconheciam completamente como agir em relação aos membros do outro sexo, simplesmente por que não tiveram possibilidade de presenciar um ato sexual e ninguém os ter esclarecidos sobre tais atitudes.[22]

Observa-se, então, que para o especialista as atitudes humanas estão condicionadas. O autor ressalta a intima relação da produção cultural e da habilidade de comunicação. Para ele a linguagem é fortemente influenciada pela cultura, porém aquela também é – de certa forma – viabilizadora e formadora desta. Nesse sentido temos:

(...) Acompanhando o desenvolvimento de uma criança humana e de uma criança chipanzé até o primeiro ano de vida, não se nota muita diferença: ambas são capazes de aprender, mais ou menos, as mesmas coisas. Mas quando a criança começa a aprender a falar, coisa que o chimpanzé não consegue, a distância se torna imensa. Através da comunicação oral a criança vai recebendo informações sobre todo conhecimento acumulado pela cultura em que vive. Tal fato, associado com sua capacidade de observação e de invenção, faz com que ela se distancie cada vez mais de seu companheiro de infância.

É interessante observar que não falta ao chimpanzé a mesma capacidade de observação e invenção, faltando-lhe porém a possibilidade de comunicação. Assim sendo, cada observação feita por um indivíduo chimpanzé não beneficia a sua espécie, pois nasce a caba com ele. No caso humano, ocorre exatamente o contrário: toda a experiência de um indivíduo é transmitida aos demais, criando assim processo de acumulação.[23]

É importante, também, ressaltar que a cultura recebe e exerce influência direta na biologia. É certo que a espécie humana se diferencia morfo e fisiologicamente entre homens e mulheres, porém é consenso entre os antropólogos que a divisão de trabalho e qualquer outra diferenciação cultural entre os gêneros são socialmente construídas. Para Laraia, observa-se:

A verificação de qualquer sistema de divisão sexual do trabalho mostra que ele é determinado culturalmente e não em função de uma racionalidade biológica. O transporte de água para a aldeia é uma atividade feminina no Xingu (como nas favelas cariocas). Carregar cerca de vinte litros de água sobre a cabeça implica, na verdade um esforço físico considerável, muito maior do que o necessário para o manejo de um arco, arma de uso exclusivo dos homens. Até muito pouco tempo, a carreira diplomática, o quadro de funcionários do Banco do Brasil, entre outros exemplos, eram atividades exclusivamente masculinas. O exército de Israel demonstrou que a sua eficiência bélica continua intacta, mesmo depois da maciça admissão de mulheres soldados[24]

Salienta, com certa comicidade irônica, que atualmente até a amamentação é uma tarefa que pode ser transferida ao homem com um artefato denominado mamadeira. É evidente na antropologia que os comportamentos e demais diferenciações entre homens e mulheres são culturalmente instituídas e falsamente atribuídas à biologia. Em sentido contrário, a cultura influencia a biologia, podendo ser citadas como exemplos doenças psicossomáticas de diversas etnias. Conforme vemos:

Os africanos removidos violentamente de seu continente (ou seja, de seu ecossistema e de seu contexto cultural) e transportados como escravos para uma terra estranha habitada por pessoas de fenotipia, costumes e línguas diferentes, perdiam toda a motivação de continuar vivos. Muitos foram mortos pelo mal que foi determinado de Banzo. Traduzido como saudade, Banzo é de fato uma forma de morte decorrente da apatia.

Foi, também, a apatia que dizimou parte da população Kaingang de São Paulo, quando teve o seu território invadido pelos construtores da Estrada de Ferro Noroeste. Ao perceberem que seus recursos tecnológicos, e mesmos seus seres sobrenaturais, eram impotentes diante do poder da sociedade branca, estes índios perderam a crença em sua sociedade. Muitos abandonaram a tribo, outros simplesmente esperaram pela morte que não tardou.[25]

Tão importante quanto desmitificar o determinismo biológico é fazer o mesmo com o determinismo geográfico. As diferenças entre indivíduos para estudiosos pouco dependem duas limitações ou condições geográficas em que estão inseridas, tal como foi o raciocínio para a biologia. É o que se percebe, conforme o a seguir:

Os xinguanos propriamente ditos (Kamayurá, Kalapalo, Trumais, Waurá etc.) desprezam toda reserva de proteína existente em grandes mamíferos, cuja caça lhes é interditadas por motivos culturais, e se dedicam mais intensamente à pesca e à caça de aves. Os kayabi, que habitam o Norte do parque, são excelentes caçadores e preferem justamente os mamíferos de grande porte, como a anta, o veado, caitiu etc.[26]

Desmitificados tais preceitos assumiremos que a Cultura é por sua natureza um conceito dinâmico. O tempo também exerce papel importante na alteração dos padrões culturais, por isso a sociedade é palco de constantes conflitos entres gerações. As anteriores visam perpetuar seus hábitos, ao passo que as novas almejam quebrar os paradigmas estabelecidos e substituir protocolos instituídos pelos seus próprios. Ensina Laraia, sobre isso:

O tempo constitui um elemento importante na análise de uma cultura. Nesse quarto de século, mudaram-se os padrões de beleza. Regras morais que eram vigentes passaram a ser consideras nulas: hoje uma jovem pode fumar em público sem que a sua reputação seja ferida. Ao contrario de sua mãe, pode ceder um beijo ao namorado em plena luz do dia. Tais fatos atestam que as mudanças de costumes são bastante comuns. Entretanto, elas não ocorrem com tranquilidade que descrevemos. Cada mudança, por menos que seja, representa o desenlace de numerosos conflitos. Isto porque em cada momento as sociedades humanas são palco do embate entre tendências conservadoras e a inovadoras. As primeiras pretendem manter os hábitos inalterados, muitas vezes atribuindo aos mesmos uma legitimidade de ordem sobrenatural. As segundas contestam a sua permanência e pretendem substituí-las por novos procedimentos.[27]

Os sistemas culturais estão em constante mudança e compreender tal dinâmica é salutar para atenuar os choques entre as diferentes gerações além de despir a mente de conclusões preconceituosas. Além do mais, tal entendimento possibilita a compreensão das diferenças entres os povos.

É a partir deste conceito de “cultura dinâmica” que surge a ideia de “Relativismo Cultural” fruto da constatação da diversidade humana. Apesar de cada cultura possuir características gerais, comuns com outras, há, porém características que são especificamente suas e tais peculiaridades tornam uma cultura diferente das outras. A partir daí que as práticas culturais passaram a ser percebida como parte de uma imensa variabilidade, tornando o comportamento humano algo plural, diverso.

Nesse sentido, passa-se a afirmar a existência de comportamentos aceitáveis para um grupo que são para outros – por vezes até totalmente inconcebíveis. Então, assume-se uma postura com fulcro no pressuposto de que não existe verdade absoluta, que qualquer prática é válida. É possível dizer que a postura relativista abre espaço para equívocos. As críticas à concepção relativista da cultura são severas, se baseiam na prerrogativa que a atitude de relativizar (considerar todos os pontos de vista válidos) pode levar a visões limitadoras, ambíguas de modo a conduzir a percepção do “outro” a apreensões.

O relativismo cultural, em outras palavras, ignora o diálogo entre as culturas sob os argumentos etnocêntricos. É falho ao não reconhecer uma cultura molda a outra sem necessariamente se sobrepor. Se ambas se reconhecerem mutuamente restará ultrapassar as divergências com a formação de acordos.

Nessa lógica de diálogo intercultural, cabe salientar que este fenômeno tendo ao consenso que direitos humanos e humanitários são, por sua essência abstrata, interpretáveis em qualquer cultura. Tratam-se de direitos da humanidade, não podendo qualquer parcela privar ou ser privada, em especial quando estamos tratando de uma intenção de dominação de um grupo sobre outro.

5. O ordem internacional como viabilizador de mudanças e melhoras – a exemplo do Brasil

A dignidade humana é um valor universal na filosofia, que já foi objeto de apreciação pelos maiores pensadores que já pisaram no globo. Ela surge da filosofia ética e da moral, sempre estando vinculado a outros valores como “bem” “correto” ou até “dever”. Ele tem sido amplamente citados em discursos políticos principalmente após a segunda guerra mundial. Este valor tem é multifacetado possuindo uma dimensão intrínseca ao indivíduo e uma extrínseca a este implicando em responsabilidades e direitos.

O filósofo Immanuel Kant, filósofo iluminista que viveu entre 1724 e 1804, dedicou parte de sua obra a defender que a moral e a Ética são valores universais consequência natural da racionalidade, que por sua vez é uma característica inata do homem. É inegável a existência de críticas à sua teoria, porém conceitos kantianos (como o imperativo categórico universal), são até hoje usados amplamente por discursos em prol da dignidade da pessoa humana.

Para o professor e ministro Luís Roberto Barroso a dignidade humana é um direito que precede a existência humana, além de justifica-la. Ele não é absoluto, nem possui conceito delimitado e deve ser abstraído no in casu. É como explana:

Realmente, não é fácil elaborar um conceito transnacional de dignidade humana, capaz de levar em conta da maneira adequada toda a variedade de circunstâncias religiosas, históricas e políticas que estão presentes nos diferentes países. Apesar isso, na medida em que a dignidade tem ganhado importância, tanto no âmbito interno quanto no discurso transnacional, se faz necessário estabelecer um conteúdo mínimo para o conceito, a fim de unificar o seu uso e lhe conferir alguma objetividade. Para levar a bom termo esse propósito, deve-se aceitar uma noção de dignidade humana aberta, plástica e plural. Grosso modo, esta é a minha concepção minimalista: a dignidade humana identifica 1. O valor intrínseco de todos os seres humanos; assim como 2. A autonomia de cada indivíduo; e 3. Limitada por algumas restrições legítimas impostas a ela em nome de valores sociais ou interesses estatais (valor comunitário).[28]

Sobre essas três características, segue explanando:

Por fim, algumas poucas palavras sobre o universalismo e sua ideia correlata — o multiculturalismo. O multiculturalismo implica em respeito e apreço pela diversidade étnica, religiosa e cultural. Desde o final do século XX, tem se tornado amplamente aceito que o multiculturalismo é baseado em valores não apenas coerentes com as democracias liberais, mas também exigidos por elas. As minorias têm direito às suas identidades e diferenças, bem como o direito de serem reconhecidas. Não há dúvida de que a dignidade humana corrobora tal entendimento. Contudo, a dignidade humana, no seu significado essencial, tem também uma pretensão universalista, simbolizando o tecido que mantém a família humana unida. Nesse domínio, algum grau de idealismo iluminista se faz necessário, para que se possam confrontar práticas e costumes arraigados de violência, opressão sexual e tirania. É claro que essa é uma batalha de ideias, a ser vencida com paciência e perseverança. Tropas não conseguirão fazê-lo. Para esse propósito, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) oferece um bom guia. Pode-se destacar a escolha da expressão “universal” ao invés de “internacional”. A DUDH foi aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 12 de outubro de 1948, com 48 votos a favor, zero contra e 8 abstenções. Ela simboliza o mínimo ético a ser perseguido na finalidade de preservar e promover a dignidade humana. Os princípios e direitos consagrados na DUDH — que tradicionalmente é vista como soft law — têm sido desenvolvidos e especificados em outros documentos internacionais, considerados como vinculantes, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 16 de dezembro de 1996. Além desses documentos, existem inúmeros outros patrocinados pela ONU, assim como tratados e convenções regionais nas Américas, Europa e África que incorporaram alguns dos conceitos da DUDH.[29]

Fica claro, conforme ensina o autor, direitos como a Dignidade da Pessoa humana são mais do que um conjunto de ações que devem se ajustar à cultura de cada um. Este princípio encontra-se nas constituições pela importância à comunidade, pois ele molda e é moldado pela sociedade. Além do mais, este se define na relação entre os próprio indivíduos e na relação destes com o Estado. Por fim, este tem impacto que transcende fronteiras e costumes tendo, por mais de uma ocasião, relativizado outros tantos princípios, tais como soberania e livre manifestação cultural.

Nesse sentido, no cenário internacional muito se discute sobre a Mutilação Genital Feminina e o que fazer para garantir os direitos humanos basilares dessas mulher. Ocorre que, em aspectos empíricos não há muito que se observar. Desde a elaboração da “Convenção sobre os Direitos da Criança” em 1989 houve, nos anos subsequentes, a criação de várias organizações e publicações de relatórios com dados cada vez mais assombrosos. Só em 2012 foi editada uma resolução oficial clamando pelo fim da prática. Houve uma adesão significativa a esta que, porém conforme os relatório aqui já expostos não atingiu seu objetivo no plano existencial.

É importante então ressaltar que a pressão internacional já se mostrou eficiente em casos de violência de gênero, podendo ser citado como exemplo o Brasil e a criação da Lei 11.340 de 2006. Sua criação se deu em função da demanda de organismos internacionais ante a sensação de impunidade e insegurança que a Sra. Maria da Penha Maia Fernandes experimentou em um trágico episódio envolvendo seu ex-marido.

Em rápida síntese[30], ela denunciou na Corte Interamericana de Direitos Humanos a morosidade e a tolerância do estado brasileiro ao episódio de violência cometido pelo seu, então, marido Marco Antônio Heredia Viveiros que culminou numa tentativa de homicídio e novas agressões em maio e junho de 1983. Maria da Penha, em decorrência dessas agressões, sofre de paraplegia irreversível e outras enfermidades. A ação penal tramitou por mais de 15 anos na justiça sem que houvesse punição devida ao agressor ou ainda proteção à vítima que se viu abandonada à própria sorte.

A corte concluiu que o Estado brasileiro não tutelou pelos direitos humanos protegidos pelos acordos internacionais uma vez que permitiu que o agressor restasse impune, além de negligenciar as necessidades psíquicas, sociais e jurídicas da vítima. Por isso foi demandado então que o Estado completasse rapidamente e efetivamente o processamento penal da Sra. Maria da Penha, que procedesse com uma investigação séria a fim de determinar a responsabilidade pelas irregularidades que impediram o processamento rápido e efetivo do réu, proceder com uma política eficiente contra violência de gênero além de relatório do andamento do combate a esta.

Foi neste contexto que surge a Lei 11.340 de 2006 que evidenciou um amadurecimento da democracia, ainda que provocado de fora para dentro, durante todo o trâmite legislativo. Esta norma jurídica foi concebida e produzida em parceria de ONGs feministas, operadores do direito e instituições governamentais.

Essa forma de discriminação positiva, após muita controvérsia e crítica, consolidou uma ampla proteção ao sexo feminino. Em estudo recente publicado pelo IPEA sobre a efetividade da mencionada lei conclui-se que os locais no Brasil em que foi atribuída efetividade ou texto legal, houve um decréscimo no número de violência doméstica. Resta salientar, porém, que em regiões cuja a lei não foi aplicada (talvez por falta de recursos econômicos políticos ou institucionais) o resultado foi o contrário.

Importante ressaltar que o relatório reconhece sua limitação da mensuração dos danos da violência de gênero, justificando:

Em face da indisponibilidade de dados sobre violência não letal contra a mulher, construímos nossa avaliação empírica sobre a efetividade da Lei Maria da Penha com base na análise de homicídios e de homicídios perpetrados dentro das residências, que mais se aproximam do fenômeno da violência doméstica.[31]

Outra conclusão importante do mencionado estudo é que a mencionada lei não provocou a punição dos agressores, mas sim o despertar das vítimas que antes se encontravam silenciadas pela sensação de insegurança e abandono estatal. É assim que segue:

Outro ponto que merece destaque é o fato de que o canal comportamental que torna a lei efetiva para prevenir a violência doméstica é a percepção a priori da probabilidade de punição do infrator. No momento em que a Lei Maria da Penha foi implementada, em face da grande divulgação sobre a mudança nas chances de punição, é possível que as crenças a priori conferissem alta probabilidade de punição.[32]

O mesmo relatório finaliza sua análise frisando a importância de dar efetividade ao texto legal. Com a ampla divulgação da lei as mulheres começaram a efetivamente buscar seus direitos e romper com o ciclo de violência ao qual estão inseridas, porém se uma vez rompido esse ciclo e não atendida a expectativa de proteção, a lei pode ter o efeito contrário.

6. Considerações finais

Historicamente a desigualdade entre os gêneros está incrustrada nas relações sociais, desde tempos de outrora sendo recorrente atribuir qualquer demérito ao sexo feminino a características naturais, que via de regra não são cientificamente comprovada. Ocorre que tais divergências e discrepâncias em sua absoluta maioria tem origem política. Em função disto surgiu o movimento feminista, voltando-se de início à busca incessante a igualdade social, política, econômica e cultural entre os sexos.

Ocorre que até o presente momento a diferença entre os gêneros ainda é observada no mundo, conforme dados apresentados. Esta por sua vez apresenta várias facetas sendo umas das mais cruéis e assustadoras a mutilação genital feminina. A pratica frequentemente é pautada no argumento de ser uma manifestação cultural, porém além de ser prejudicial para a saúde das vítimas também representa uma forma de subjugação do sexo feminino na sociedade.

No cenário internacional muito se discute sobre o tema e, de forma recorrente, conclui-se que a confrontação desta é imperiosa para garantir a manutenção de vários princípios dos direitos humanos. Ocorre que pouco se faz para que ela, na pratica, não ocorra mais. Sabe-se que em outros casos a comunidade mundial – como no caso da criação da lei 11.340 de 2006, também conhecida como Lei Maria da Penha – mostrou-se mais efetiva no combate à violência de gênero. Considerando que a defesa de direitos de grupos oprimidos é responsabilidade de todos, cabe nesses casos ações que visam garantir a efetividade dessa proteção.

Referência Bibliográfica

Livros

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Artigos

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[1] JAGGAR, Alisson M. e BORDO, Susan R. Gênero, corpo e conhecimento, p. 251

[2] PATEMAN, Carole. O contrato sexual. P. 142-143

[3] BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. p. 66-67

[4] PATEMAN, Carole. O contrato sexual. P. 326-327

[5] Locução adverbial latina para “tal como está escrito.”

[6] FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, p. 1168

[7] FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, p. 903

[8] Banco Mundial “Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 2012: Igualdade de Gênero e Desenvolvimento”, p. 2-3

[9] Banco Mundial “Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 2012: Igualdade de Gênero e Desenvolvimento”, p. 12-13

[10] Banco Mundial “Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 2012: Igualdade de Gênero e Desenvolvimento”, p. 16-17

[11] Banco Mundial “Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 2012: Igualdade de Gênero e Desenvolvimento”, p. 17

[12] Banco Mundial “Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 2012: Igualdade de Gênero e Desenvolvimento”, p. 18

[13] Banco Mundial “Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 2012: Igualdade de Gênero e Desenvolvimento”, p. 20

[14] Declaração conjunta “Eliminação da mutilação genital feminina”, p. 2

[15] Declaração conjunta “Eliminação da mutilação genital feminina”, p. 7

[16] Declaração conjunta “Eliminação da mutilação genital feminina”, p. 13

[17] Declaração conjunta “Eliminação da mutilação genital feminina”, p. 13

[18] Declaração conjunta “Eliminação da mutilação genital feminina”, p. 12

[19] FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, p. 508

[20] HEINEMANN, Fritz. “A filosofia no século XX”. P. 523

[21] HEINEMANN, Fritz. “A filosofia no século XX”. P. 524

[22] LARAIA, “Cultura: um conceito antropológico”, p.50-51

[23] LARAIA, “Cultura: um conceito antropológico”, p.52

[24] LARAIA, “Cultura: um conceito antropológico”, p.19

[25] LARAIA, “Cultura: um conceito antropológico”, p.75-76

[26] LARAIA, “Cultura: um conceito antropológico”, p.23

[27] LARAIA, “Cultura: um conceito antropológico”, p.99

[28] BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. p. 72-73

[29] BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. p. 75

[30] Feita com base no próprio relatório da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Nº 54/01 do caso nº 12.051, publicado em 2.000 pela mencionada corte.

[31] IPEA, Avaliando a efetividade da Lei Maria da Penha. p. 34

[32] IPEA, Avaliando a efetividade da Lei Maria da Penha. p. 34

Por Lara Terazzi Basso


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